Fontenele Teixeira da Silva




Fontenele Teixeira da Silva

Especialidade:

Acadêmico Patrono

Cadeira: 59

Patrono: destinado a Seção de Medicina Clínica


Mini currículo:

A benevolente apreciação dos méritos de quem vos fala, para membro desta douta Academia, proporcionou o desvanecedor ensejo de vos dirigir a palavra nesta noite, para fazer o elogio do Dr. Fontenele Teixeira da Silva, como a praxe acadêmica requer, pois ele é o patrono da cadeira n° 59, de que modesta e humildemente sou o ocupante.

Incumbência, aliás, altamente honrosa para mim, mas que me investe de graves responsabilidades. Bem sei que me não devo deixar trair pelo coração, pois, constitui este momento uma situação transbordante de gratas emoções, que provêm de reminiscências tão intensamente vividas em comum; como irmãos, em ambiente afetuoso da mesma família, e, como médicos, desta mesma cidade, que bondosamente nos acolheu a ambos como filhos também.

Numa apreciação retrospectiva de nosso patrono, volvendo o olhar sobre sua vida e sua obra, se nos depara uma figura humana admirável, dotada de qualidades excepcionais, sobrelevando-se, entre muitas, o amor à missão de médico, a qual ele cumpriu de modo exemplar, como um verdadeiro sacerdote, consciente da grandiosidade e da nobreza do exercício da medicina, à qual ele se dedicou apaixonada e inteiramente.

O relato de uma passagem de sua vida, na aparência destituída de importância, mas que compõe apenas um instantâneo de um conjunto psicológico, como outros que intencionalmente incluirei neste ensaio, traduz, de certa maneira, sua abnegação e seu elevado sentimento de dever profissional. - Numa tarde de domingo em que, adoentado, repousava a conversar com um nosso primo e colega, batem-lhe á porta. - Mande dizer que não está, Fontenele, pois você se acha doente e de cama, ponderou-lhe carinhosamente o primo. - Isso não resolverá, meu amigo, explicou ele. Esquece-se você então de que Papai do Céu, lá de cima, vê tudo? - Orientou-se assim meu irmão, dentro desse modo de proceder em todas as suas atuações na vida, com elevação e dignidade, não se furtando sequer ao cumprimento do mais elementar dever.

Ficou sobejamente demonstrada sua natural inclinação para nossa exigente e nobre arte de curar. E manifestou diversas vezes que, se fosse obrigado a reiniciar sua vida, seria sem dúvida sempre como médico. Tivemos oportunidade de verificar como era autêntico esse sentimento de seu inato pendor, recolhendo ao acaso impressões de seus clientes, logo transformados em amigos, que recordam com saudade seu trato afável, seu ar paternal, de acolhedor calor humano, e relembram também com ternura, momentos em que sua bondade, dedicação ao doente, magnanimidade, demonstradas em situações difíceis, comprovavam um admirável desempenho dos penosos encargos de médico. Assim, para suavizar a grande tensão do ambiente, criada pela gravidade da doença, procurava ele atuar psicologicamente. Ora indagando: - Como vai esta menina? - dirigindo-se com carinho a uma paciente octogenária; ora declarando sem cerimônia: - Tragam o mais requentado café que tiverem, pois ainda vou visitar outros doentes - respondendo ao convite amável para o tradicional cafezinho, num tom que a todos deixava tranquilos e encantados com a sua simplicidade.

Tenho conhecimento de que algumas famílias de seus clientes, mais afetivas, numa demonstração de carinhosa homenagem, conservam o copo ou a xícara reservados para ele em suas visitas, que se prolongavam em conversas benfazejas e explicações minuciosas, cuidadosamente repetidas para que não houvessem falhas na execução de seus conselhos.

A propósito de sua preocupação com a clareza das receitas e das dietas, ele mesmo ria gostosamente quando relatava, em roda de amigos, o seguinte diálogo, um tanto jocoso, ocorrido com uma dessas clientes bem femininas, taquipsíquicas e exuberantemente tagarelas, que parecem mais interessadas no que falam do que nas explicações que lhes são dadas pelo médico.

Depois de muitas perguntas e de mal ouvir a prescrição, de modo sôfrego despede-se, sempre apressada, e sai. A seguir, volta, abre a porta e indaga: - E abóbora, Dr. Fontenele, posso comer? E ele, imperturbável: - Não Sra., não está na lista. - Também detesto abóbora! Respondeu ela irrefletida e encantadoramente...

Sua convivência com os colegas era a um tempo, amistosa e fraternal. Quem não se lembra das ruidosas partidas de sinuca, nas tardes memoráveis de nossa antiga sede, na Rua Visconde do Rio Branco? E do saudoso Prof. Arídio Martins, que em sua coluna de "O Fluminense", de nosso caríssimo Alberto Torres, traçava curiosos perfis humorísticos dos colegas? O dedicado ao Fontenele foi o intitulado "Mil Cento e Um". E esclarecia: dois dentes, uma falha e mais uni dente. Quem não se recorda dessas brincadeiras, que aproximavam amigos?

Meu querido e saudoso Prof. Waldemar Berardinelli, cuja memória reverencio neste momento, meu mestre e de alguns aqui presentes, como é o caso do nosso digníssimo colega Carlos Tortelly Costa, sentenciava com propriedade e aparente contradição, a respeito do comportamento do médico em relação ao paciente: "na clinica, mais vale saber tratar com o doente que o doente?. Em ambas eventualidades, a meu ver, o Fontenele foi completo e inexcedível. Com isso, teve sem dúvida uma das maiores clientelas desta cidade. E foi, como poucos alcançam, um dos médicos mais reverenciados e queridos pelos clientes.

Outras particularidades pessoais de nosso patrono, muito características mesmo de seu modo de ser, merecem alusão. Quando lhe perguntavam de onde era, costumava responder, deixando perplexo momentaneamente o interlocutor, que havia nascido no mais belo pais do mundo, referindo-se à sua terra natal. Isso projetava decerto agradáveis impressões recolhidas na infância, da encantadora beleza da vista do local onde nascera, do qual se descortina todo o esplendor da Lagoa de Araruama, compondo em conjunto um quadro de raro e maravilhoso efeito paisagístico.

Sua juventude transcorreu entre as despreocupações das gaiolas de passarinhos e os animadíssimos jogos de futebol, frequentes em nossas cidades do interior, em que se via aplaudido como goleiro, nas renhidas pelejas entre o Rubro de Araruama e o Tamoio de Cabo Frio.

Posteriormente, no Fluminense de Niterói também foi desportista atuante. - Seus amigos mais próximos hão de se recordar dos esfuziantes entusiasmos pelo futebol, sobretudo nas vitórias de seu Tricolor. - Sem esses dados deixaria certamente mais incompleto este esboço biográfico, pois o esporte foi uma de suas paixões.

Ainda em Araruama fez seu curso primário. Os estudos de preparatórios foram em Niterói, como aluno interno do Colégio Alberto Fortes, onde muitos jovens de todo o nosso Estado estudavam e prestavam exames no Colégio Pedro II. Foi essa, a meu ver, a fase de nossos cursos secundários que nos deu as mais sólidas culturas humanísticas. Fazia ele excelentes referências a esse preclaro e enérgico educador que foi o Dr. Alberto Rodrigues Fortes, consagrado Professor e mais tarde Prefeito deste Município.

A então Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro, na tradicional Praia Vermelha, de que fez parte da turma de 1933, foi frequentada por ele com grande dedicação e entusiasmo, mas estudando com bastante sacrifício. Seu gosto pelo magistério e a necessidade de complementar suas despesas pessoais, pois era o primogênito de uma família de sete estudantes, e de modestas economias, levaram-no a dedicar boa parte de seu tempo a lecionar geografia na Academia de Comércio, e física no Colégio Brasil e no Colégio Salesiano, onde tomou parte em bancas examinadoras designadas pelo Colégio Pedro II, que se constituíam em almejado título honorífico para professor daquela época.

Granjeou fama de grande mestre; exigente, mas justo e querido; austero, mas amigo dos alunos.

Sempre foi estudante muito aplicado. Conservou até ao fim o gosto pelos livros, assim os de medicina como os clássicos da língua. De nossos poetas mostrava notada preferência pelos versos de Castro Alves, com os quais se deleitava repetindo poesias inteiras de cor.

Na Faculdade seguiu os cursos do Prof. Miguel Couto, magnífico lente de clínica médica, que transmitia às novas gerações, com brilho invulgar, os valores oriundos de um Torres Homem e de um Francisco de Castro. As aulas que mais o empolgaram, entretanto, foram as célebres e concorridíssimas lições do Prof. Vieira Romeiro, em anfiteatro da Santa Casa da Misericórdia superlotado de estudantes, ávidos e pressurosos de ouvirem e verem o artista exímio e incomparável da didática da propedêutica médica. Seus livros o Fontenele os leu e releu com o prazer de quem saboreia um delicioso romance,

Recém-formado, foi bem sucedido em seu consultório na cidade de Araruama. O desejo de estudar e mais se aperfeiçoar o trouxe, porém, de volta a Niterói. Passou então a frequentar os serviços do Prof. Annes Dias, no Hospital Estácio de Sá, cuja figura aureolada de Mestre, impressionou-o profundamente, aumentando em Fonte, como o chamávamos carinhosamente na intimidade - o entusiasmo pelo estudo. Entrando pelas noites, em horas seguidas com os livros, até as madrugadas, ampliava dia a dia seus conhecimentos. As doenças da nutrição, em particular o diabete, passou a tomar seu maior interesse; tendo sido incontestavelmente um profundo e acatado conhecedor da especialidade.

Publicou alguns trabalhos científicos, em que deixou transparecer claramente sua inegável cultura médica. Todos eles escritos com elegância, clareza e correção de linguagem, pois se revelava um bom conhecedor do vernáculo. Na Revista Fluminense de Medicina, órgão oficial da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Niterói, nossa atual A.M.F., encontramos editado "A Curva Glicêmica na Clínica". Excelente estudo do metabolismo glicídico, em que é destacada a importância e a significação desta prova funcional do pâncreas no diagnóstico do diabete, ilustrando-o com numerosos gráficos. É, ainda hoje, perfeitamente atualizado e de leitura muito proveitosa para quem necessite se aprofundar no assunto.

Na mesma revista encontramos outra publicação, intitulada "O Catabolismo da Hemoglobina", onde o autor estuda em minúcia a complexa fisiopatologia das icterícias, situando com nitidez as interferências do hepatócito e das células do sistema retículo-histiocitário na bilirrubinogênese. Penso que o cunho científico deste trabalho permite-nos considerá-lo com o valor de uma tese de docência.

Foi laureado em 1938 pela Sociedade de Medicina e Cirurgia de Niterói com o "Prêmio Antônio Pedro", ao qual concorreu com o trabalho "Apendicectomia e Auto-Vacinas Apendiculares", que despertou na época, referências elogiosas de revistas médicas argentinas e francesas.

Além dessas contribuições científicas, colaborou como professor-auxiliar na cátedra e clinica médica de nossa Faculdade, com louvável dedicação, na cadeira do Prof. Alcides Lintz, que ao seu tempo foi regida pelo Prof. Edgard Magalhães Comes. Ocupação que ele desempenhou com muito amor, pois encontrava no magistério uma das realizações de seus ideais.

Fora de suas atividades médicas, o único cargo que exerceu foi o de Ministro do Tribunal de Contas do Estado. Destacada e prestigiosa função, que ele ilustrou com seu nome honrado e sua reconhecida cultura. Foi nomeado para esta importante posição administrativa pelo digníssimo Marechal Paulo Torres, então governador deste Estado, e do qual o Fontenele foi amigo fraternal desde a juventude.

Deveremos ressaltar ainda, mas de um modo muito especial e elevado, como verdadeiro adorno da personalidade seu apreço, seu procedimento exemplar de filho, de irmão sempre amigo, de chefe de família altamente responsável, dedicado e amoroso, queridíssimo por todos nós, e que encontrou em sua digníssima esposa Frofessora Jahyra Coelho Teixeira da Silva, a companheira amiga e compreensiva, que lhe deu três filhos, para os quais eles viviam.

Do ponto se vista profissional propriamente dito, entendemos que ele se comprazia mais com a sensação do dever cumprido, com o diagnóstico bem apurado e correto, com a oportunidade de ter sido em verdade útil ao doente, que com as recompensas de natureza puramente material, as quais tinham sempre um valor muito relativo ou secundário em sua maneira de viver, quase apostolar. Declarações espontâneas confirmaram isso, provindas de pessoas que receberam discreta e caridosamente muitos auxílios, jamais referidos por ele. Pelo que soube, foi dessa natureza sua última visita médica, no dia 09 de outubro de 1965. Quando ao retornar de São Gonçalo, numa tarde quente de um sábado de verão, aos sessenta anos de idade, mas em pleno exercício profissional, conservando ainda sua compleição atlética e porte elegante, sofre fatal acidente de automóvel, em consequência , possivelmente, de recidiva de infarto do miocárdio, que lhe privou de súbito do controle do carro.

Morreu - "como um cedro que tomba na mata" comentava eu, algum tempo depois, quando, amainada a tempestade emocional, recordava uns versos do seu agrado, dos idos da Revolução de Trinta. Deixou inegavelmente, um grande vazio na alma da cidade, no seio da família e em nossos corações. Mas não morre quem sempre é lembrado! Como o fazemos neste momento - por que não dizer? Orgulhosamente.

Muito longa seria esta palestra a recordar momentos da vida sem dúvida profícua de nosso patrono, pois, como irmão, colega e um de seus maiores admiradores, muito teria que vos relatar. Procurarei concluir valendo-me de novo, mas muito a propósito, de palavras do Prof. Berardinelli - repetindo Miguel Pereira - que a meu ver traduzem um dos mais importantes objetivos de nossa Academia: "O culto dos mestres deve ser a religião dos que me aprendem".

 

Biografia escrita pelo Acadêmico fundador, Cadeira nº 59, Walter dos Santos Teixeira.


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