Miguel de Oliveira Couto




Miguel de Oliveira Couto

Especialidade:

Acadêmico Patrono

Cadeira: 6

Patrono: destinado a Seção de Ciências Aplicadas a Medicina


Mini currículo:

Cultuar o passado, manter vivas as tradições, é reverenciar o próprio espírito da nacionalidade. Povo sem tradição é corpo sem alma. A essência do que somos é produto do que fomos, é caldeamento atávico e seletivo das qualidades e virtudes que nos legaram os nossos maiores. É justo, portanto, e até mesmo indispensável, que honrando a cultura que nos transmitiram os nossos antepassados, os que balizaram com sua vida, sua obra, seus exemplos, os caminhos do futuro, rendamos preitos de saudade e de reconhecimento a quanto deixou, tal pioneirismo, de marcante e esplendente trajetória, como objetivo a ser perseguido, como troféu supremo a ser alcançado por quantos creem na Humanidade.

Uma nação se faz, se constituí, se afirma, pela presença de líderes. Mas os líderes só se fazem pelo aprimoramento das qualidades intrínsecas que trazem dos próprios genes que lhes deu origem. Os vultos que em todas as épocas plantaram os marcos da grandeza de sua raça ou do seu povo, em qualquer setor de atividades, em qualquer ramo do conhecimento humano, quer na guerra quer na paz, foram aqueles que tiveram condições de desenvolver, até um grau hiperbólico, aquelas potencialidades que, no comum das criaturas, não ultrapassam a fase de latências.

E uma nação se engrandece, uma nação se projeta, no concerto das demais, na razão direita da projeção e da grandeza desses vultos que constroem a história da pátria inscrevendo a claridade de seus exemplos ao lado do capítulo das sucessivas gerações.

Rendo, portanto, neste momento, meus senhores, meu tributo de respeito e admiração a quantos tiveram a iniciativa de fundar esta Academia para perpetuar, na memórias dos fluminense, os nomes daqueles que no exercício da Medicina pontificaram na velha província.

E entre os vultos que aqui nasceram ou exerceram o sacerdótico de sua profissão, destaca-se como uma das mais altas expressões Miguel Couto, aureolado por sucessivas gerações de estudantes e pacientes durante cerca de meio século do mais intenso labor científico.

Miguel Couto por onde quer que se o analise, que se o estude, quer como cidadão, como cientista, professor, homem de letras, político, e predestinado enfim, representa um mundo de facetas brilhantes, sendo impossível ressaltar qual a de maior fulgor.

Como cidadão nasceu em berço humilde em 1º de maio de 1865, no bairro da Saúde do Rio de Janeiro. Tinha 5 anos quando perdeu o pai e deve ao heroísmo obscuro de Dona Maria Rosa do Espírito Santo, sua progenitora, que com sua máquina de costura, em Niterói, onde a vida era então mais barata, foi cria-lo juntamente com seus 4 irmãos, as primeiras lições de pertinácia que lhe forjaram a têmpera para os duros embates da vida.

Atingindo o pináculo da glória, 30 anos depois, é o próprio Miguel Couto quem fala sobre as duas grandes mulheres de sua vida: "A formação do meu caráter, a elas devo: a primeira - minha mãe, que costurava dia e noite para extrair do anonimato da nossa extrema pobreza, um doutor; também não lhe fui um filho, mas uma filha. Enquanto viveu, privei-me de construir família, para não dividir a dedicação que lhe devia; a outra, aquela que transformou em realidade a minha visão Canaã, e é há 20 anos a fonte e a inspiração de minha vida. Os psicólogos, encontrarão facilmente neste fato a causa do meu feitio moral, essa irreversível tendência para a bondade, que é um dos maiores defeitos de um homem". Bossuet dizia: "L´Universe n´a rien de plus grand que les grands homme modestes".

Sobre esse defeito que Miguel Couto humildemente se atribuía, a bondade, traço preponderante e inconfundível de sua personalidade, assim se pronunciou Alceu Amoroso Lima, seu substituto na Academia Brasileira de Letras, em seu discurso de posse em que fazia a análise apologética dos seus antecessores: "Voltando-me agora para essas sombras imortais que nesta noite, pairam silenciosas e invisíveis sobre nós, vejo surgir a que mais perto de nós se encontra, tão viva ainda para todos aqui presentes, que parece seguramente a de intruso, a voz que ousa invocá-la neste instante. Continua entre vós, Miguel Couto. Estais ainda a ouvir a inesquecível oração com que transpôs os vossos umbrais. Estais ainda a ver, a sua grande figura pálida, de gestos longos, de voz velada e cariciosa, de olhos tristes e indormidos, deixando em tudo e em todos, um pouco do seu coração inesgotável".

Já Alcântara Machado dizia a seu respeito: Foi o homem "cuja função era ser bom".

Como médico numa época em que a medicina ainda não dispunha do arsenal científico que nos assessora, numa época em que o empirismo abria curso a toda gama de especulações subjetivas, quando nem sempre o bom senso substituía com vantagens a limitação dos recursos propedêuticos, Miguel Couto começou a marcar sua presença científica pelo acompanhamento anatomopatológico dos seus diagnósticos e o embasamento de uma profunda cultura médica que o projetaram nacional e internacionalmente.

Escrevendo diversos tratados de Clínica Médica, um tratado sobre Febre Amarela e inúmeros trabalhos de invulgar cunho científico para a época, ainda aí, como cientista, Miguel Couto dava demonstração dos seus altos dotes morais: o acendrado amor à verdade, como corolário de sua constante preocupação de bem servir.

É ainda Alceu de Amoroso Lima quem nos diz do mestre: "Dava à sua tarefa, à sua profissão, à sua insaciável curiosidade científica e social, essa imensa capacidade de dedicação, que o faria, por toda vida, conjugar o verbo servir, em todos os tempos".

Miguel Osório, seu ex-discípulo, a ele também se referiu em discurso na Academia Brasileira de Letras: "A ciência poderá um dia vos reclamar tudo o que lhe havíeis prometido. Mas o que vale a ciência, falaz, precária e balbuciante, diante dessa verdade eterna, insofismável, indestrutível: a caridade? E vós reunistes as duas. Na vida de um sábio completo, só é perfeita a atitude da inclinação para o estudo quando termina na prosternação para a prece. Foi sempre essa a missão de Miguel Couto. E sua vida um admirável equilíbrio entre a bondade e o conhecimento".

Sua carreira de professor começou em circunstâncias dramáticas que tiveram o condão de projetá-lo bruscamente do anonimato à celebridade. A Faculdade Nacional de Medicina abriu um concurso para a cátedra de Clínica Médica, onde se inscrevera Pedro de Almeida Magalhães, um dos seus discípulos queridos de Francisco de Castro "o divino mestre".

É Francisco de Assis Barbosa quem relata em "Retratos de Família" (José Olímpio Editora): "Dezenas de médicos ambicionavam o lugar. Mas quando se falava em Almeida Magalhães, todos recuavam temerosos: - é inútil competir com ele, não só é um sábio, como conta com a simpatia da Congregação. Miguel Couto vacilou até o último instante em inscrever-se no Concurso. Se outros colegas, nomes feitos, tinham desistido da prova, por quê havia de insistir ele, nome desconhecido, clínico obscuro da ralé da Saúde? No dia em que se encerravam as inscrições, encontrando-se na rua com Azevedo Sodré, participou ao amigo a resolução que parecia inapelável: - Não me inscrevo mais - dizia andando pela rua da Misericórdia. - Não tenho coragem...

Sem dar atenção ao que ouvia, Azevedo Sodré, conduziu-o quase à força até a Secretaria da Faculdade. Colocou-lhe uma pena na mão e ordenou - inscreva-se!

Naquele tempos os candidatos arguiam-se mutuamente perante a Congregação e o público. No primeiro dia foi a vez de Pedro de almeida Magalhães. Temperamento exaltado, gritava, esmurrava a mesa. Metido na sua sobrecasaca preta, Miguel Couto refutava sem perder a calma, uma a uma, as questões formuladas.

- É espantoso! - Teria dito Francisco de Castro. - É espantoso! Ele está corrente de todo o movimento da medicina!

No dia seguinte o arguente foi Miguel Couto. Tratou o adversário com a mesma simplicidade da véspera. Não levantou a voz. Perguntava sem arrogância. Quando tinha algo a objetar, era com sobriedade e finura que o fazia. E assim, de mansinho, derrotou a Pedro de Almeida Magalhães.

Começa então, uma carreira que ao longo de 30 anos, iluminou muitas das grandes figuras que ainda hoje pontificam na Medicina Nacional.

Ainda há dias, durante uma reunião da Sociedade Brasileira de Escritores Médicos, contava-me o insigne pioneiro de oncologia brasileira, Dr. Mário Kroeff, o episódio altamente edificante por ele presenciado numa enfermaria da Santa Casa. Chegava o paciente num carrinho para a aula do mestre. Apresentavam-se os estudantes para acerca-se do doente, quando este foi acometido por uma hemoptise. Miguel Couto, incontinente, aproxima-se dele com a toalha da cabeceira, volta-se para os alunos, que se quedavam mudos e admirados com o desprendimento do seu gesto. Valendo-se do instante, ensinou-lhes o mestre a seguinte lição: - Atentai bem, meus jovens: a simplicidade não se avilta ante a pobreza. Cuidai, entretanto, de não empregá-la ante os poderosos para que não a confundam com o servilismo, que, este sim degrada a condição humana.

Como Homem de Letras, Miguel Couto fez sua profissão de fé ao ingressar na academia Brasileira de Letras em 02 de junho de 1919, ocupando a cadeira de Afonso Arinos, com as seguintes palavras: "Quero dizer, meus senhores, que como médico me apresentei nos vossos sufrágios, ao médico os concedestes, e só o médico tendes na vossa presença. Retirai-me os atributos da medicina e nada mais me resta; desde que me entendi, a ela dediquei os meus pensamentos e depois todos os meus atos, e se nesse empenho até hoje me consumo só nele me retempero: para ele os meus anseios, as minhas inspirações e o meu trabalho".

E mais adiante, como que respondendo a possíveis indagações sobre a ausência de uma bagagem especificamente beletrista, continua Miguel Couto; "Desde que me admitistes em vossa companhia, sentenciastes que as letras médicas também são letras, e certas boas letras. Que página existe na língua francesa, mais clássica, mais leve, de uma sutil claridade ante crepuscular do que a "Introdução à Medicina Experimental" de Claude Bernard, ou mais empolgante na sua forte eloquência magistral do que a "Introdução Terapêutica", de Trousseau, ou mais sublime pela doçura de sua filosofia do que o "Discurso", de Pasteur A "Clínica Propedêutica", de Francisco de Castro, já não foi comparada, pelo sabor, às obras de Latino Coelho e Alexandre Herculano?".

A tais indagações respondeu o Acadêmico Mario de Alencar que lhe fez o discurso de recepções: ... "Já não foi surpresa um discurso de crítica, lido anos depois; foi um gozo de sentir a perfeição nas suas linhas sóbrias, cheias, discretas e elegantes e a perfeição renovou-se em cada discurso feitos pelo Paraninfo, ou pelo Presidente da Academia de Medicina. Em cada vez pensava eu em Machado de Assis, com pena de que ele já não pudesse partilhar o prazer da boa nova, e não tivesse ocasião de repetir o convite, como fizera por igual motivo a Afrânio Peixoto, para virdes proferir tais discursos nessa Academia. Depois, a instâncias de amigos esclarecidos, reunistes em volume as "Lições de Clínica Médica", e nesse volume, que é também de lições de idioma gentil e mais aquelas páginas soltas e peregrinas, foram as vossas credenciais para vos sentardes entre os sabedores do vernáculo, como um sabedor, e entre os escritores de estilo, como um estilista.

Com esses títulos, os vossos admiradores, mais por admiração que por amizade, e mais pela Academia, do que por vós mesmo, conseguiram combater a vossa teimosia em ocultardes sob fama do médico e o exclusivismo da profissão, o vosso crédito maior na representação do pensamento. Se era amável e respeitável o médico, o que mais nos interessava e devia pertencer-nos era a companhia do vosso espírito. Parecia-nos uma honra para o sentido da nossa seleção o possuirmos como um dos nossos o escritor que em breves  páginas de circunstância, demonstrara com a plena arte da palavra uma personalidade de emoção e de pensamento. É isto o que sobremodo vale, no ofício das letras.

Convidado em 1934 para integrar a Assembleia Constituinte que muito se poderia valer se sua larga experiência e de sua imensa cultura, Miguel Couto fez uma passagem meteórica pela Política em termos de tempo, mas caracterizou esta passagem com pronunciamentos de grande oportunidade e do mais aceso patriotismo que pareciam trazer o carisma da intemporalidade pela emissão de conceitos e abordagem de temas que a qualquer momento, ainda hoje mesmo, poderiam surgir aos nossos olhos com as cores vivas e os títulos em negrita das manchetes de um jornal do dia. "No Brasil só há um problema Nacional: a Educação do Povo". Esse conceito lapidar de Miguel Couto e todo o cortejo funesto de males daí decorrentes, enunciados, analisados e proclamados pelo mestre em diversas ocasiões, constituem ainda hoje - e até quando? - a base viva do nosso crônico subdesenvolvimento. Observemos a profética acuidade política deste homem de visão cosmogônica: "Há uns tantos princípios, de ordem moral ou politica, que só ele preservam o futuro de uma Nação e a conduzem a seguros destinos. Na ordem moral só o culto supersticioso da Justiça, o sentimento de uma Lei superior a cada um e igual para todos, a reverência aos seus magistrados como entes quase divinos, mantém os homens unidos em uma sociedade e só a instrução tão elevada quanto possível desses homens, nos dá a consciência do seu valor. Na ordem política, só a obediência à vontade do povo, pela garantia absoluta do voto, expressão normal dessa vontade, aniquila os apetites oligárquicos e conserva a forma representativa; só a segurança da Nação no seu território permite a tranquilidade no trabalho, principal fator de sua grandeza. Sem estes princípios e essas garantias de que servem progressos materiais, estradas de ferro, avenidas, industrias; de que valem as virtudes de um povo se ele está desunido e desarmado e tem as suas portas escancaradas à cobiça dos mas fortes?".

Miguel Couto, como assinalou o seu substituto na Academia Brasileira de Letras, como político, "terminava sua obra como homem de ação, que sempre fora, vivendo suas ideias e procurando convertê-las em regras de vida para seu povo".

Por tudo isso Miguel Couto foi um predestinado. Nascido em berço humilde sem ter quem lhe abrisse as portas do sucesso, esse homem escudou-se unicamente na bondade, fez da caridade seu gládio, armou-se de resignação e de amor ao próximo e, qual novo Dom Quixote, teve a audácia de sonhar as conquistas mais arrojadas. Foi um predestinado porque Deus, que ama os bons - continuadores que são de sua obra - permitiu-lhe alcançar tudo quanto sonhara.

E se me permitem os senhores, que me leem nesse rápido perfil de uma personalidade tão exuberante, estou em que a dádiva de Deus - cingindo a fronte do grande médico que foi Miguel Couto - é para nós outros, seus colegas menores, um estímulo, uma lição, uma mensagem, de humildade, de amor, e acima de tudo, de solidariedade humana.


 

Biografia escrita pelo Acadêmico Arthur Dalmasso.


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